“Ainda é preciso muita luta para que conquistemos uma consciência de respeito à essência humana”
Na semana Internacional do Orgulho LGBTQIA+, a servidora Josely de Moura Bastos reflete sobre desafios e ressalta a importância da mobilização permanente no enfrentamento à discriminação
A ideia de se apaixonar por outra mulher nunca tinha ocorrido à Josely de Moura Bastos, que sonhava em casar com um homem e ter filhos, até que encontrou Lídia Cordeiro. Isso já faz quase 27 anos e as duas estão juntas até hoje. Durante esse tempo, a servidora da Secretaria de Gestão de Pessoas (SGP) do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia (TRE-BA) precisou rever crenças e vencer inseguranças e preconceitos dela mesma e também de pessoas com quem convivia. Para Josely, falar sobre orientação sexual não se limita a falar sobre sexo ou gênero, vai além. “É falar da manifestação do ser, da alma humana”, defende. Nesta entrevista, a servidora reflete sobre identidade, desafios e o que considera um caminho para a liberdade: ser uma sociedade que respeita e acolhe a forma como cada pessoa ama e vive.
TRE-BA – Como é ser uma mulher lésbica na sociedade atual, em que ainda há tantas violências e posturas homofóbicas?
JOSELY DE MOURA BASTOS – Bem, fazendo um aparte, diante da terminologia LGBTQIA+, eu não me diria lésbica, mas bissexual, pois não tenho preferência por mulheres, especificamente. Eu me reconheço como uma pessoa que gosta de pessoas. Antes de me relacionar com uma mulher, me entendia como alguém que tinha preferência por homens. Sonhava em casar e ter filhos como uma pessoa heterossexual. Até que, em um determinado dia, há quase 27 anos, me percebi apaixonada por outra pessoa do mesmo sexo, pessoa essa que é minha companheira até hoje. Para mim, à época, foi difícil, pois não me reconhecia preparada para enfrentar isso diante de mim, da família e dos meus grupos sociais, dado o fato inusitado, minhas crenças e valores daquele momento. Até que, me permitindo viver o desafio que a vida me colocou, fui vencendo minhas inseguranças, meus próprios preconceitos, tudo bem aos poucos, tendo paciência comigo e com os que me rodeavam e se mostravam discriminadores. Mesmo depois de tanto tempo, ainda percebo o quanto esse é um tema que, até para aqueles a quem amamos e que nos dizem amar, requer um trato delicado, porém firme, diante da ignorância que manifestam de forma consciente ou inconsciente. Também percebo o quanto a presença da homofobia em relação à orientação LGBTQIA+ é fruto de uma mentalidade e cultura opressoras, excludentes e marginalizadoras. Em se tratando de viver essa realidade no momento atual de nossa sociedade, eu diria que, hoje, me sinto mais preparada para enfrentar essas posturas homofóbicas e preconceituosas. O que não quer dizer que não doam, que eu não me sinta violentada em meus direitos, que não me incomodem, ou, ainda, que eu cruze os braços diante de qualquer manifestação discriminatória. Porém, ver muitas pessoas passarem por violência física, psicológica, moral e tantas outras atrocidades, sem que exista meios verdadeiramente eficazes, capazes de reprimir, eficientemente, essas posturas, me faz crer que ainda se faz necessário muita luta para que conquistemos uma consciência sociocultural que tenha como base o preceito de que somos seres humanos com direito a manifestar e a exercer a nossa essência. Orientação sexual, mais do que uma questão de normalidade, é uma questão de naturalidade que tem que ser respeitada.
TRE-BA – A própria ideia de “normalidade” acaba escondendo, em várias esferas, uma padronização do que é diverso.
JOSELY DE MOURA BASTOS – Sim, e falar de diversidade no que diz respeito a orientação sexual não implica, simplesmente, falar sobre sexo e gênero. Mais do que isso! É falar de manifestação do ser, da alma humana. No dia em que despertarmos para o fato de que poder exercer a própria orientação sexual livremente, além de um direito, é uma questão natural, não mais nos entenderemos como diferentes nesse sentido, mas, sim, como iguais, o que, para mim, torna tudo mais fácil. Pode parecer utopia, mas sonho em ainda ver o momento em que sermos livres e exercermos direitos não seja mais uma questão de imposição do cumprimento da lei por força de tristes números estatísticos, por força de dores atrozes, vivenciadas no corpo e na alma por pessoas inocentes, mas, sim, uma prática consciente do exercício dos direitos humanos, da própria cidadania, da própria dignidade. Assim, as palavras “minoria” e “opressão” serão termos ultrapassados e obsoletos. E, também, que possamos ver isso em todos os outros espaços carentes de justiça.
TRE-BA – E no trabalho? Como é ser servidora em um órgão público ainda marcado pela heteronormatividade?
JOSELY DE MOURA BASTOS – Para mim, a heteronormatividade no TRE-BA é uma consequência da dinâmica socioeconômica cultural que, como resultado de uma sociedade machista, influenciou e ainda influencia a nossa realidade. Historicamente falando, as condições social, econômica e cultural foram determinantes para a composição heterossexual, não somente do quadro de pessoal de órgãos públicos como o de empresas privadas. A pessoa com orientação sexual tida como “anormal” costumava não ser aceita, não incluída ou excluída ao se tomar conhecimento de não se tratar de pessoa heterossexual. Apesar dos avanços, em alguns espaços de trabalho isso ainda ocorre. No TRE-BA, observo que, mesmo que em sua maioria os cargos sejam ocupados por servidores supostamente heterossexuais, ainda assim, já vi colegas do universo LGBTQIA+ exercerem cargos de gestores. Nunca soube, até o momento, direta ou indiretamente, de alguma ou algum colega que tenha sido discriminada ou discriminado por sua orientação sexual e que, por conta disso, ficasse impedida ou impedido de exercer cargo no órgão. Contudo, observo que dentro do TRE-BA o ranço dessa cultura machista ainda abre espaços para o exercício de uma homofobia velada, percebida em brincadeiras tidas como “normais”, insinuações e atos desrespeitosos que, para mim, continuam contribuindo para a manutenção de uma sociedade excludente.
TRE-BA – Que desafios você enfrenta em seu cotidiano e como vem se articulando, ao longo dos anos, para superá-los?
JOSELY DE MOURA BASTOS – Já tive desafios maiores e em maior número, porém, atualmente, eles estão mais ligados a questões de ordem afetiva e, mais especificamente, dentro do ambiente familiar, mesmo tantos anos depois. Normalmente, é na família que se busca a energia e a força necessárias para conseguir dar conta dos “nãos” que se recebe. Quando é a própria família que nega a sua dignidade, o seu direito de ser você, fica difícil superar as dores que possam advir de práticas discriminadoras. Embora, de maneira geral, tenha realizado grandes progressos, ainda existem pessoas em nossas famílias que não validam o nosso papel em relação à vida familiar e isso interfere, inclusive, na forma como nos vemos. Acho que a busca por orientação profissional contribuiu, e muito, para que eu pudesse me fortalecer a partir da conscientização de que eu é que preciso validar o meu direito de ser respeitada em minhas decisões, no meu direito de ser feliz. Para mim, nesse processo, o autoconhecimento é importantíssimo para alcançar firmeza de propósito e não permitir que a opinião, o preconceito e a discriminação do outro acabem por determinar a perda do interesse nos próprios direitos. Essa não é uma luta que cessa por adquirimos consciência, pois dá para perceber o quanto a cultura é excludente – e essa existe em todos os espaços, não só no familiar – tem força sobre as mentalidades ditatoriais que insistem em fazer preponderar os seus interesses de exclusão.
TRE-BA – Qual a importância de existir uma data que marque o orgulho LGBTQIA+ e como a sociedade pode trazer essas pautas para o cotidiano?
JOSELY DE MOURA BASTOS – A importância está em lembrar, todo ano, que a luta não acabou, que existe uma causa justa pela qual se deve continuar lutando, dar visibilidade. Isso ajuda a fortalecer uma classe e, consequentemente, a busca e a conquista dos seus direitos. Já conquistamos alguns e ainda há muito a conquistarmos e, por se tratar de uma questão natural, sempre existirá pessoas LGBTQIA+ que dependerão e contribuirão com essa busca de direitos e espaços próprios na sociedade. Mesmo sabendo que o preconceito em relação à orientação sexual ainda é realidade, acredito que, além de todo o trabalho educativo que já vem sendo disseminado socialmente, é importante que essa pauta possa ser pensada, discutida e refletida nos ambientes familiares e escolares, independentemente de terem pessoas LGBTQIA+ em sua composição. À medida que esse tema for ganhando familiaridade, for esclarecendo a sociedade, a tendência vai ser a diminuição do preconceito, o reconhecimento e o respeito à diversidade sexual e de gênero.
TRE-BA – O que falta para que a Justiça Eleitoral baiana possa se afirmar como uma instituição mais plural e diversa?
JOSELY DE MOURA BASTOS – Penso que iniciativa do TRE-BA de promover a lembrança da data do orgulho LGBTQIA+; de enviar aos servidores e demais colaboradores a Cartilha “Fui vítima do LGBTfobia, o que fazer?”; além de realizar bate-papo virtual em seu canal no Youtube, tendo como tema “Diversidade e democracia”, no qual inclui a comunidade LGBTQIA+, entendendo que a diversidade fortalece a democracia, já denota um sentimento e movimento por parte da instituição de acolher e valorizar a pluralidade, ressaltando sua importância interna e externamente. Acredito que nós, que compomos o órgão e que vivenciamos essa realidade cotidianamente excludente, discriminadora, opressora e que fazemos parte de um grupo de pessoas tidas como “diferentes”, à medida em que possamos nos manifestar enquanto seres passíveis de contribuir para uma sociedade mais inclusiva, mais justa, menos desigual, estaremos fortalecendo a instituição para que ela tenha mais espaço de promoção da justiça em nossa sociedade.
Entrevista: Carla Bittencourt, jornalista da Assessoria de Comunicação do TRE-BA